Nada pior para a
democracia do que uma instituição não merecedora de crédito, sobretudo quando
composta pelos representantes do povo. É o caso do Congresso Nacional, que
começou o ano elegendo para a presidência do Senado Federal e da Câmara dos
Deputados dois políticos ao estilo velha raposa, de biografia ruim.
Ficou bem claro nestes primeiros meses do ano que não há nenhum interesse em
fazer os brasileiros terem orgulho daquela Casa de leis. Tanto assim que, logo
após a combatida eleição dos presidentes do Senado e da Câmara, dois deputados
federais condenados pelo mensalão, que tiveram seus direitos políticos
cassados, acabaram autorizados a assumir seus cargos - como se fosse possível
duas pessoas sem os direitos políticos atuarem na elaboração de leis (é sempre
bom perguntar que validade terão as leis por eles aprovadas). ...
Mas não ficou somente nisso: estando já no plano inclinado, a referida Casa de
leis afundou-se ainda mais quando elegeu para presidir a Comissão de Direitos
Humanos e Minorias da Câmara um deputado radical, embora evangélico, que faz
lembrar por sua conduta os grupos fundamentalistas islâmicos. Ele parece estar
gostando muito da notoriedade e dos ódios públicos demonstrados contra a sua
pessoa.
Não foi tudo: agora, como coroamento dessa escalada rumo à indesejável
desmoralização, outro parlamentar de reputação igualmente ruim apresentou
projeto que despedaça a Lei da Improbidade Administrativa, instrumento de
extrema valia no cerco aos agentes políticos que fazem uso do cargo para
enriquecer, avançando no dinheiro público. Pretende-se mutilar essa lei,
chamada também lei do colarinho branco.
Acusado de estar agindo em causa própria, o senador Ivo Cassol (PP-RO), na
maior caradura, apresentou projeto de lei que sufoca a eficácia da Lei da
Improbidade Administrativa. Ele pretende introduzir modificações que reduzem a
liberdade dos promotores de Justiça de ajuizar ações que envolvam pessoas
suspeitas de avanço no dinheiro público.
Por equívoco ou desconhecimento, esse parlamentar se voltou contra a lei, que é
boa, e não contra a conduta dos que se conduzem de forma equivocada na sua
aplicação. Realmente, observam-se em muitas comarcas iniciativas de promotores
de Justiça que causam a impressão de estarem vinculados a interesses políticos
ou inimizades pessoais. Isso não deveria ocorrer.
A política partidária nos municípios é sempre muito explosiva e tende a dividir
as opiniões. Não é desejável que isso aconteça, mas muitas vezes o promotor
público causa a impressão de estar mesmo envolvido com um dos grupos e por isso
as ações de improbidade administrativa por ele propostas parecem ser de
encomenda, desmerecendo o sentido da lei.
Também os juízes nem sempre adotam o comportamento adequado no sentido de
evitar o uso da lei para atendimento de interesses contrariados. De fato, a Lei
de Improbidade Administrativa exige que após a propositura da ação o requerido
seja intimado para oferecer explicações no prazo de dez dias. Após essa
resposta, em juízo de admissibilidade da ação, o magistrado decide se a recebe
ou não. Muitas vezes essas ações têm a clara feição de fruto de interesses
políticos contrariados, mas mesmo assim são recebidas e processadas pelos
juízes, sendo posteriormente julgadas improcedentes.
Essa conduta, que não é a melhor, faz com que realmente cerca de 80% das ações
por improbidade administrativa resultem em nada - e nisso se apega o senador
Ivo Cassol para tentar desfigurar a lei. Ele pretende que os promotores
públicos, quando ingressarem com ações equivocadas, sejam condenados ao
pagamento das despesas forçadas sofridas pelos acusados.
Não há nenhuma virtude em lutar para modificar uma lei que traduz princípios
adotados desde a nossa primeira Carta Magna. Realmente, já na Constituição do
Império de 1824, que dispunha sobre o caráter sagrado e inviolável do
imperador, se previu claramente no artigo 133 a responsabilização dos ministros
"por peita, suborno ou concussão" e "pela falta de observância
da Lei".
A responsabilização dos ministros, admitida desde aquela época, foi repetida
nas Constituições posteriores e dá sentido às disposições da Lei de Improbidade
Administrativa atual, que disciplina os casos de improbidade e busca impedir
condutas que levem a auferir vantagem patrimonial indevida em razão do
exercício do cargo, mandato, função, emprego ou atividades administrativas.
A Constituição de 1988, a propósito, em seu artigo 14, parágrafo 9.º, reservou
para lei complementar, a ser aprovada pelo Congresso Nacional, as normas disciplinando
as ações em casos de improbidade administrativa. Isso veio a ser feito em 1992
e desde então a lei vem sendo aplicada com êxito e, em muitíssimos casos,
impede que agentes públicos desonestos permaneçam em cargos públicos, além de
serem condenados à devolução dos dinheiros que acumularam ilicitamente.
A exigência de moralidade para o exercício do cargo, a legitimidade das
eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de
função, cargo ou emprego na administração direita ou indireta são valores de
extrema relevância que a Lei de Improbidade procura resguardar. Seria um
absurdo esquartejar a lei por falhas na sua aplicação, decorrentes de condutas
inadequadas, e não de disposições nela contidas.
O projeto do senador Cassol - já acusado, repita-se, de estar agindo em causa
própria - merece aguardar sem pressa nas gavetas do Congresso Nacional por
muitos e muitos anos. Seria uma violência contra o País convertê-lo em nova lei
de improbidade, que teria, talvez, a cara de quem mereceria estar punido por
ela.
Por Aloísio de Toledo César é desembargador aposentado do Tribunal de Justiça
de São Paulo. E-mail: aloisio.parana@gmail.com.
Fonte: Jornal Estado de São
Paulo - 18/04/2013
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