quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Outra vez discriminada

Por Matheus Teixeira e Adriana Bernardes


A cobradora atacada verbalmente por uma passageira é impedida por agente da delegacia de Santa Maria de registrar denúncia sobre o crime. Diretor-geral da corporação lamenta a falha do policial e garante que o caso será investigado...

A cobradora Claudinei Gomes, 33 anos, lamenta a atitude do policial: "Se nem a polícia quer, quem sou eu para ir atrás dessa mulher?"

Quatro dias após ser xingada por uma passageira de “preta safada e negra ordinária”, a cobradora Claudinei Gomes, 33 anos, sofreu nova discriminação. Desta vez, pelo próprio Estado. Depois de um dia de trabalho, ela se dirigiu à 33º Delegacia de Polícia (Santa Maria) ontem à noite a fim de registrar uma ocorrência. Ao chegar ao balcão de atendimento, um agente de plantão se recusou a fazê-la. Ele teria dito que a cidade está violenta demais e a aconselhou a não “perder tempo com isso”. 

Ao ser informado pela reportagem sobre o episódio, o diretor-geral da Polícia Civil, Jorge Xavier, classificou a conduta do policial como uma falha grave. “Se isso de fato aconteceu, será aberto um processo disciplinar contra o responsável”, garantiu. Ele acrescentou que a polícia vai procurar a cobradora para que ela registre a ocorrência. “Vamos dar atenção a ela.” Xavier admitiu que falhas humanas podem acontecer. “Todos os anos, a Polícia Civil faz 400 mil ocorrências. Num universo desse, sempre pode haver um erro”, argumentou.

Procurado pelo Correio, o delegado-chefe da 33ª DP, Guilherme Nogueira, não quis comentar o caso. A cobradora Claudinei ficou tão decepcionada com a recusa do agente que perdeu a vontade de encontrar a agressora. “Se nem a polícia quer, quem sou eu para ir atrás dessa mulher? Nunca vou achá-la sozinha”, lamentou. Além disso, a câmera de segurança do ônibus não estava funcionando. “Se tivesse uma gravação com o rosto dela, facilitaria a minha vida. Infelizmente, não tem, mas pelo menos eu fiz a minha parte, que é denunciar esses casos para que não aconteçam de novo”, disse.

O incidente na delegacia de Santa Maria confirma a declaração do secretário especial da Promoção da Igualdade Racial, Viridiano Custódio. Antes do ocorrido com Claudinei, ele alertou ao despreparo dos agentes para lidar com crimes de racismo. “Muitas vezes, eles consideram outras coisas mais importantes e acabam não priorizando as vítimas de preconceito racial”, explicou. Para isso, serão implantadas em quatro delegacias sessões especializadas. “Agentes serão capacitados para tratar exclusivamente do assunto”, informou (leia Três perguntas para).

Viridiano acredita que o primeiro passo para diminuir o racismo no Brasil foi dado. “A criação de um ministério para a questão negra e a política de cotas mostram que o Estado assumiu que o preconceito racial realmente existe. Esse é um bom começo, reconhecer os erros históricos”, destacou. Para ele, agora faltam leis mais rígidas para crimes como esse. “Não existe diferença entre racismo e injúria racial, como diz a lei. Ambos os casos tinham de ser enquadrados como crime inafiançável”, opinou.

Descontrole

Para Carlos Alberto de Paulo, especialista em relações raciais e política social, o racismo no Brasil tende a recrudescer. “Mesmo diante das políticas de promoção racial, o imaginário popular mantém o caldo colonial de que o negro é inferior. Isso explode sem controle nos momentos cotidianos. Talvez estejamos caminhando para um acirramento racial sem precedentes na história do país”, analisou.

O especialista lembra que o Brasil tem a segunda maior população afrodescendente do mundo, perdendo apenas para a Nigéria. “Quando falamos em políticas públicas, falamos em políticas universais e que não estão atentas à violência sofrida pelos jovens negros mortos com uma precisão genocida.” Carlos Alberto dá o exemplo da Guerra do Vietnã (1964-1975), onde houve 20 mil mortes. “Em apenas dois anos, 24 mil jovens negros foram assassinados no Brasil e achamos isso absolutamente natural ou nos silenciamos”, conclui.

Parte da intolerância no DF pode ser medida por meio do Disque-Racismo (156, opção 7). Entre março do ano passado e este mês, o serviço do GDF recebeu cerca de 8 mil ligações. Desse total, 126 foram classificadas como racismo, uma média de 11 casos por mês.

Depoimento

“Não há punição exemplar”

“Quando a minha funcionária chegou aos prantos à garagem e contou a história, entendi perfeitamente a dor que ela estava passando. Já fui vítima de racismo três vezes e garanto que não há agressão física que machuque mais do que essa. Uma das vezes foi quando eu era motorista do dono da empresa em que trabalhava. Fui buscá-lo em uma reunião e estava procurando uma vaga para estacionar o carro enquanto ele não descia. Achei uma vaga, mas um homem passou na minha frente e estacionou primeiro. Fui tirar satisfação, e ele respondeu: ‘Quem você acha que tem prioridade? Olha a cor da minha pele e olha a da sua’. Na mesma hora, liguei para a polícia e não deixei o sujeito sair do local. Fomos à delegacia, fiz a ocorrência e, até hoje, nada aconteceu. É por isso que essas coisas se repetem. Não há uma punição exemplar para o criminoso. Só quem passou por isso sabe o quanto é revoltante ver essas pessoas livres, longe da cadeia.”

Jerônimo Carlos Souza, 51 anos, coordenador de garagem de uma empresa de ônibus, chefe da cobradora Claudinei, vítima de injúria racial na última sexta-feira

Três perguntas para

Viridiano Custódio, secretário especial de Promoção da Igualdade Racial

Que medidas a secretaria vem tomando para evitar que casos de racismo se repitam ou sejam punidos de forma exemplar?

Em até três meses, quatro delegacias terão sessões especializadas para tratar do assunto. Os agentes serão capacitados para cuidar de casos de racismo. Haverá sessões em unidades do Plano Piloto, de Ceilândia, de Santa Maria e de Planaltina. Além disso, há a determinação do governador de construir uma delegacia específica para o tema.

Quando essa delegacia deve ser inaugurada?

O Agnelo já determinou a criação dela, mas o único problema é a falta de pessoal na Polícia Civil do DF. Esperamos que alguns dos agentes aprovados no concurso que será feito neste ano sejam designados para a nova delegacia. Trabalhamos para inaugurá-la até o fim do ano.

Por que casos como o da australiana que foi solta um dia após xingar uma negra ainda acontecem?

A lei está completamente equivocada. Não existe diferença alguma entre racismo e injúria racial. A nossa legislação, porém, separa esses dois casos. Se enquadrassem tudo como racismo e tudo fosse considerado crime inafiançável, isso não aconteceria.

Um processo por dia

Preconceito

Vítimas da intolerância

Casos recorrentes de racismo e de injúria racial chamam a atenção na capital federal. No caso da manicure ofendida em um salão de beleza da Asa Sul, a acusada trabalha na CEB e responde a mais de uma sindicância interna na companhia por "indícios de atitudes racistas". Ela está em liberdade

Adriana Bernardes e Matheus Teixeira

A manicure Tássia dos Anjos, de 22 anos, foi discriminada na última sexta-feira: "Ainda estou em choque"

A capital que abriga gente de todo canto do Brasil e tem representações diplomáticas de diferentes continentes cultiva a intolerância contra a cor da pele do seu semelhante. Enquanto uma parcela da população assiste perplexa aos recorrentes crimes de racismo, as vítimas são tomadas pela impotência e pela revolta, pois não conseguem o respaldo legal para a punição exemplar dos algozes. São tantos casos no Distrito Federal que o governo determinou a criação de quatro seções especializadas em crimes de racismo e de injúria racial dentro de unidades policiais.

Além da intolerância praticada duas vezes contra a cobradora Claudinei Gomes, inclusive ao ser impedida de registrar a ocorrência na delegacia (leia reportagem na página 20), um dos casos mais recentes envolve a funcionária da Companhia Energética de Brasília (CEB) Louise Stephanes Garcia Gaunth. Na última sexta-feira, empregadas e clientes de um salão de beleza na 115/116 Sul se revoltaram quando ela ofendeu a manicure Tássia dos Anjos, 22 anos. A cliente teria dito que a trabalhadora negra era “raça ruim” e ainda pediu que a vítima se retirasse. A australiana foi presa em flagrante e libertada pela Justiça em menos de 24h.

Essa não seria a primeira denúncia contra a acusada. Por meio de nota, a CEB esclareceu que a empregada responde a mais de uma sindicância interna na empresa por “indícios de atitudes racistas”. A companhia informou que encaminhará para o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios o resultado da apuração. Em relação ao episódio contra a manicure, a CEB analisa quais medidas administrativas poderão ser tomadas.

Tássia voltou ao trabalho ontem. “Ainda estou em choque. A agressão verbal dói mais do que qualquer outra. A vida continua. A melhor resposta para isso é seguir em diante com mais força que nunca”, desabafa (leia Depoimento). Para ela, no entanto, o desfecho inicial do caso se mostrou uma decepção. “Pensei que ela (Louise) pagaria pelo que fez. A polícia veio e a levou para a delegacia no mesmo momento. Mas, no outro dia, acordei com a notícia de que ela havia sido liberada”, lamentou.

A australiana chegou a ser encaminhada à Penitenciária Feminina no Gama, mas a Justiça determinou que ela responda ao processo em liberdade. A vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no DF, Indira Quaresma, explica que a decisão do magistrado seria o único caminho possível. “Como o crime é inafiançável, o acusado é apresentado ao juiz para que ele averigue se é o caso de relaxamento — quando a prisão é ilegal — ou se é o caso de prisão preventiva, quando há risco de fuga ou possibilidade de o réu atrapalhar as investigações. Se não há nenhuma das opções, só há uma alternativa: colocar em liberdade”, esclareceu. 

O Correio tentou falar com o advogado de Louise ao longo do dia, mas ele não retornou os recados deixados na caixa postal.

O governador Agnelo Queiroz lamentou a agressão racial no salão de beleza: "O racismo é lamentável em qualquer situação, e é por isso que o GDF tem políticas públicas de combate à discriminação, com o Disque-Denúncia. A população tem consciência disso, tanto que a denúncia de foi feita pelas pessoas que estavam no salão de beleza. Uma atitude que merece nosso respeito", disse Agnelo. 

"Como o crime é inafiançável, o acusado é apresentado ao juiz para que ele averigue se é o caso de relaxamento - quando a prisão é ilegal - ou se é o caso de prisão preventiva, quando há risco de fuga ou possibilidade de o réu atrapalhar as investigações. Se não há nenhuma das opções, só há uma alternativa: colocar em liberdade" Indira Quaresma, vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB no DF

“Macaca suja”

Na tarde de ontem, a reportagem identificou mais duas vítimas. Jerônimo Carlos Souza, 51 anos, coordenador de garagem de uma empresa de ônibus do DF, relatou três agressões nos últimos 10 anos, todas denunciadas à polícia (leia mais na página seguinte). Carlos Alberto Santos de Paulo, especialista em relações raciais e política social, foi constrangido por funcionários de uma loja de telefonia em Aracaju e presenciou uma jovem ser xingada de “macaca suja” por uma mulher na entrada de um banco, também na capital sergipana. “A minha vontade é de não voltar mais aqui (Sergipe). É muito constrangedor. São situações que, seguramente, quem puder vai para terapia, e quem não puder vai para o manicômio”, desabafa.

Depoimento

“É difícil se recuperar”

“Quando a mulher entrou no salão, a recepcionista disse que eu seria a manicure que pintaria suas unhas, e ela perguntou: ‘Tem de ser ela?’ Mandaram outra funcionária atendê-la, e eu e uma colega ficamos sentadas, pois não tínhamos nada para fazer. Nesse momento, ela voltou a me agredir. Pediu para eu me retirar do ambiente porque não queria ficar olhando para mim. Eu me revoltei, e ela disparou de novo: ‘Por que só gente da tua cor fala comigo, raça ruim?’ Uma outra cliente, também negra, irritou-se e elas começaram a discutir. Naquela hora, nem isso eu consegui, estava sem força. Mas a confusão continuou, e a polícia chegou e levou a mulher para a delegacia. É difícil se recuperar depois de ser xingada dessa forma, e depois, para piorar, ainda fiquei sabendo que ela já foi liberada. Isso é um absurdo. Ela tem de pagar pelo que fez. A Justiça, mais uma vez, deixou a desejar.”

Tassia dos Anjos, 22 anos, manicure vítima de injúria racial na última sexta-feira

Um processo por dia 

André Shalders e Julia Chaib

"(O Disque Racismo) Será um número de três dígitos acessível em todo o território nacional e que nos permitirá centralizar as informações e as denúncias desse tipo de crime. Com isso, poderemos formar um panorama nacional sobre a questão" Carlos Alberto de Souza e Silva Júnior, ouvidor da Seppir

Em 2013, a Ouvidoria da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) abriu 425 processos para averiguar ocorrências de racismo em todo o país — média de mais de um por dia. O número representa um aumento discreto em relação a 2012, quando houve 413. Segundo o titular da Ouvidoria, Carlos Alberto de Souza e Silva Júnior, o levantamento explica apenas em parte a situação do crime no país. “Essa é somente a quantidade de casos aos quais nós demos seguimento diretamente. Não entram aí os que foram apurados por outros órgãos, como as secretarias de segurança dos estados e que nós só acompanhamos”, alertou.

A Seppir informou que planeja lançar, ainda em 2014, o Disque Racismo nos moldes do implementado pelo Governo do Distrito Federal (GDF). “Será um número de três dígitos acessível em todo o território nacional e que nos permitirá centralizar as informações e as denúncias desse tipo de crime. Com isso, poderemos formar um panorama nacional Sobre a questão”, detalhou o ouvidor.

Em entrevista ao Correio em março do ano passado, no entanto, Carlos Alberto havia prometido para 2013 o lançamento do serviço. Segundo ele, o atraso se deu por conta de uma contestação judicial à licitação que deveria contratar a empresa responsável pelo atendimento. “É um processo complexo, tivemos alguns imbróglios que prejudicaram a implementação. Mas conseguimos resolver, e a licitação está na fase de homologação”, disse Carlos Alberto, sem adiantar a data de lançamento.

O coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade de Brasília (UnB), Nelson Inocêncio, avaliou que a demora na implementação do Disque Racismo pode estar associada à falta de prioridade e à própria Seppir. “É uma secretaria que trabalha com orçamento limitado. E há uma dificuldade de entendimento e de vontade política do primeiro escalão do governo para definir o que é prioridade”, opinou.

Dados levantados pela reportagem confirmam que, apesar de existir há quase 11 anos, a Seppir, de fato, trabalha com um orçamento menor do que outros órgãos, inclusive entre os que lidam com temáticas parecidas. Dos R$ 56,13 milhões autorizados para o órgão na Lei Orçamentária (LOA) de 2013, R$ 26,55 milhões foram efetivamente gastos, de acordo com informações consultadas por meio do sistema Siga Brasil. A título de comparação, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República teve um orçamento autorizado, no ano passado, de R$ 366,83 milhões, dos quais conseguiu aplicar R$ 99,6 milhões.

Nelson reforça que a quantidade de violações cometidas no país é maior do que o número de denúncias recebidas pela Seppir. “Existem muitas práticas racistas que não são denunciadas. As pessoas se sentem coagidas, são discriminadas, mas acham que não vai valer a pena denunciar ou não querem se expor”, afirmou. Para ele, uma ferramenta como o Disque Racismo seria fundamental para o desenvolvimento de políticas voltadas para combater a discriminação. “Você vai ter um banco de dados, um mapa nacional da situação. Isso ajuda a pensar ou redimensionar as ações afirmativas da área.”

Internet

Levantamento da ONG Safernet mostra que a internet também é um espaço fértil para casos de racismo. Só em 2013, a entidade recebeu mais de 78 mil denúncias e identificou 12.889 páginas com esse tipo de conteúdo na internet. Os sites estavam hospedados em mais de 32 países. Esse tipo de violação só perde para casos de pornografia infantil, assunto de 24.993 domínios identificados pela ONG. 

Em uma rede social, as situações de racismo são as mais recorrentes. No ano passado, houve 6.811 páginas que propagavam injúrias do tipo, contra 4.830 de pornografia infantil. O levantamento condiz com a realidade na Ouvidoria da Seppir. “Ainda não temos os dados separados por tipo, mas muitas das denúncias que apuramos são de crimes de racismo no ambiente virtual”, atesta o ouvidor Carlos Alberto.


Fonte: Correio Braziliense - 18/02/2014

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