sexta-feira, 23 de maio de 2014

Opinião: Balbúrdia institucional

A situação fica cada vez mais caótica, mas falta o poder capaz de restabelecer o senso das medidas.



Pacato, o ministro Cardozo garante: “A polícia sabe que sua greve é ilegal”. Todos ficamos mais tranquilos. ...
Folguei por duas semanas em terras estrangeiras, o que, suponho, configurou vantagem para os leitores. O avião que me trouxe pousou em Guarulhos às 5h20 da manhã. Dez minutos depois, alcancei a sala de controle dos passaportes. Ali estava um indivíduo parrudo, provavelmente egresso de malograda experiência como vendedor de abridores de latas em logradouros públicos, para intimar aos berros: “Brasileiros para a esquerda, estrangeiros para a direita”.

Percebi que a turma da direita iria passar por maus bocados. Fui pela esquerda e logo me postei ao lado da esteira rolante à espera da minha mala. Lá pelas tantas, vieram do além-paredes ruídos de decibéis elevados, baques sinistros, de sorte a justificar alguma apreensão quanto à saúde do material desembarcado. Pela esteira, começou o desfile soturno de valises, bolsas, pacotes, uns e outros ofereciam a visão de suas entranhas, e não faltava a explicação, fornecida por um certo número de cadeados quebrados, já inúteis e inertes. De todo modo, minha mala chegou uma hora depois. Intacta, felizmente.

Às 6h45 tomei um táxi, e de pronto o motorista me brindou a respeito do risco de assalto ao longo da Rodovia Ayrton Senna, e no trajeto a seguir até a cidade. Há tempo, relatava, bandidos de motocicleta surgiam de repente para bloquear esse ou aquele carro e levar a bagagem do recém-chegado. E tudo o mais que fosse possível. Pelo caminho, nada aconteceu, contudo, a não ser que, ao cruzarmos com veículos parados à margem da pista, a velocidade de 10 por hora diminuía em virtude do súbito interesse dos companheiros de rota pela situação do carro subtraído ao fluxo, talvez por algum desarranjo mecânico ou falha humana. “Muita curiosidade”, comentou o taxista.

Cheguei em casa às 8h20, após averiguar que a tarifa aumentou. Não foi uma chegada gloriosa. Na noite da mesma segunda, soube que um grupo de assaltantes armados de fuzis haviam bloqueado o trânsito na fronteira entre Cidade Jardim e Morumbi, “bairros nobres”, como diria um destes cidadãos inclinados à crença granítica de habitar em Dubai, para apoderar-se de um caixa eletrônico. Fuzis em punho, paravam os veículos e expulsavam seus ocupantes. Formavam um dique para estancar o trânsito e ordenavam: “Vá embora, mas deixe a chave no contato, dentro de meia hora pode voltar e apanhar seu carro”. Tudo com urbanidade, só faltou que vestissem casacas.

Na terça-feira, eclodiu a greve do transporte público paulistano, sem contar o protesto dos professores para paralisar a Avenida Paulista. Não me consola constatar que também está longe de ser glorioso o momento que o País atravessa. Por razões em parte obscuras, certamente insondáveis a uma análise superficial. Uma sensação de profundo desconforto transcende a maciça campanha anti-PT e, portanto, contra Dilma e Lula, movida pelo verdadeiro partido de oposição brasileiro, ou seja, a mídia nativa, a agremiação dos privilegiados. Nem tão eficaz, ao que tudo indica, conforme se apura ao verificar os números da pesquisa do Ibope divulgada na quinta 22: Dilma não caiu, talvez tenha até avançado, os demais ficam mais ou menos na mesma. O que chama a atenção, no entanto, é o clima estranho, de insatisfação difusa, e tão forte e prepotente a ponto de provocar a balbúrdia institucional. Quem se habilita a restabelecer o senso das medidas no cenário desvairado?

Muitos dos avanços registrados pelo governo Lula atolaram na praia. A despeito da atenuante, digamos assim, da crise mundial, que mais cedo ou mais tarde não deixaria de atingir o Brasil, o governo Dilma não soube manter o ritmo do predecessor, por obra, inclusive, do desempenho de uma equipe ministerial inferior à anterior. Fico pasmo ao ouvir o ministro da Justiça dizer que a polícia “sabe que sua greve é ilegal”, assim como fiquei diante das amáveis relações do ministro Paulo Bernardo com os porta-vozes da casa-grande, ou com a farta distribuição de favores tilintantes pelo BNDES, ou com a falta de sintonia entre o governo e o partido que o levou e teria de sustentá-lo no poder. Com falhas uivantes dos dois lados.

As condições do País, medievais de muitos pontos de vista, são claras para quem tem olhos e não acredita morar em Dubai. Insinua-se, porém, no cenário algo mais, ainda impreciso, indefinido, embora ameaçador, à revelia de todos os envolvidos, quem sabe, como acontece quando a situação foge do controle. Espero que ainda tenhamos chance de mudar o rumo deste enredo.


Fonte: MINO CARTA - revista Carta Capital -

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