segunda-feira, 26 de outubro de 2015

José Rainha: "Vamos botar 100 mil na Praça dos Três Poderes"

Condenado a 31 anos de prisão, ex-líder do MST José Rainha arregimenta um exército no DF e Entorno para ocupar as terras públicas



No arriar das malas do governo Rollemberg, o socialista teve de lidar com um problema de grandes proporções. Ainda mergulhado na crise financeira, amanheceu um dia com a notícia de protestos simultâneos em várias rodovias. Era uma reação contra a retirada, com 2,5 mil policiais, de famílias acampadas em uma área próxima a Samambaia. Diante da demonstração de força, o governo teve de recuar...

Por trás da ocupação e dos protestos, está um nome com extensa ficha corrida no movimento social e na Justiça. Fundador e um dos líderes de maior expressão do MST, José Rainha Júnior, fez história no Pontal do Paranapanema, em São Paulo, onde hoje estão assentadas milhares de famílias.

Dissidente do MST, ele criou a Frente Nacional de Luta, que congrega uma massa de trabalhadores sem-teto e sem-terra. Em 2013, chegou ao Entorno e começou a montar a base. Desde então, Brasília virou um objetivo a ser conquistado. “Vamos longe e vamos organizar muita gente, pois aqui tem muita terra, tanto para habitação como para reforma agrária.”

Analfabeto até os 17, o capixaba de 55 anos afirma que enfrentará, sem medo, os grileiros de Brasília e também o Estado — que, segundo ele, é conivente. Quando não está viajando ou na casa onde mora sua família, em Teodoro Sampaio (SP), passa o tempo no acampamento próximo ao Recanto das Emas, onde há cerca de 250 famílias.

Não sabe até quando terá salvo-conduto para andar livremente. Amparado por um habeas corpus concedido pelo Supremo Tribunal Federal, recorre de uma sentença que o condenou a 31 anos e cinco meses de cadeia por extorsão, formação de quadrilha e estelionato. Segundo a acusação, ele teria feito trabalhadores de massa de manobra para invadir terras e extorquir proprietários de terras.

Para ele, a pena é exdrúxula e a condenação, mais um troféu por sua luta pela reforma agrária. “Por que um criminoso de alta periculosidade estaria aqui em Brasília negociando com o governador, com a Câmara? Nunca vi Fernandinho Beira-Mar, Marcola, os criminosos com altos níveis de periculosidade negociar nada. Não sou um criminoso. Sou um líder social.”

“Minha vida é acampamento; vou morrer e vou ser enterrado em acampamento. Não fico em hotel, até pela minha própria segurança. Se eu não me sentir confortável em morar debaixo de um barraco, eu não sei por que eu luto”

Quando e por que decidiu vir para Brasília?

Vim, primeiro, em 2013, quando criamos a Frente Nacional de Luta (FNL) — uma articulação dos que saíram do movimento sem-terra com os agricultores familiares e os sem-teto. Brasília é a capital onde se define a política. A perspectiva era criar uma força política do DF e Entorno. Aqui, existem três realidades: uma é a questão do grilo, que é uma vergonha. Muita terra pública grilada, inclusive da União, principalmente por grandes grupos políticos e econômicos. Tem também poucas terras legitimadas. E, além disso, um número enorme de trabalhadores que vieram de outros estados desempregados, semiempregados ou em busca de trabalho, o que é uma perspectiva muito grande de massificação do movimento. Então, viemos em 2013 e, depois, quando os novos governadores foram eleitos. O governo do PT fez um monte de promessa e não cumpriu nada, e chega um governo socialista — pensei: ‘Opa, então vai ser melhor’. Primeiro, a gente veio discutir com o governador, procurar um espaço. Mas a única forma de ser ouvido é a luta.

Não houve diálogo com os governos?

Sim, nós construimos uma base aqui em Brasília. O governo do PT não cumpriu nada, foram feitos vários acordos. Neste governo, procuramos mostrar, com as ocupações, que havia áreas disponíveis, mas tivemos muita dificuldade. Nós fomos tratados aqui de forma repressiva, nos fizemos ser ouvidos pela mobilização.

Você se refere à desocupação daquela área próxima a Samambaia? 

Sim, a primeira grande ocupação foi para demonstrar que aquela área era pública. Houve um despejo violento. Então, fizemos um protesto fechando várias rodovias. Saiu um acordo para acampar as famílias há uns seis meses. Foi importante para provar que aquela área era pública. A Terracap teve de abrir a caixa-preta. Aqui, existem áreas definidas pela Terracap, como urbanas com uso rural e ocupada por grileiros. Nós conseguimos demonstrar isso. E não é pouca terra. Então, se a terra é da Terracap, é um direito nosso ocupar para fazer casas para moradia ou chácaras para reforma agrária. Fizemos uma proposta decente de habitação usando o Minha casa, Minha vida. O governo federal entraria com o recurso, e o GDF, com o terreno. Diziam que não tinham terra e provamos que tem sobrando. O DF e Entorno é a região com maior deficit de habitação no Brasil pelo tamanho de sua população; é um negócio absurdo. É impressionante essa periferia de Brasília. Eu não conhecia isso. Em meados de 2013, fiz esse reconhecimento todo. Estudei a região.

Que realidade você encontrou? Isso está sistematizado? 

Sabemos que a dimensão de áreas públicas aqui é muito grande. Chutando, tem áreas de 30 mil, 40 mil hectares de terra definida. Há muita terra em comum, em que parte é da Terracap e a outra parte grande é de grileiro, porque, quando se olha no cartório, vê que a origem é da Terracap; os títulos são falsos. E tem terra da União, já demarcada e destinada, com grilo em cima. A situação da Terracap é muito complicada. Nós sentimos que há uma proteção do grilo muito grande. Sabíamos que aqui não iríamos enfrentar apenas o governo; mas também o grileiro e grupos milionários, além de uma incompreensão do estado pelos movimentos. As forças aqui são repressivas; a ação de despejo que houve aqui foi impressionante. Nós cadastramos mais de 15 mil pessoas. Ficaram umas 200 famílias, que vieram parte de Santo Antônio do Descoberto, de Água Fria, de Samambaia, estão acampadas na área próxima ao Recanto das Emas. A repressão foi muito violenta. Essa pedra o governador me deve. Eu nunca vou esquecer. Isso não se faz. Mas vamos retomar a área. Vou dizer com todas as palavras: as terras públicas do estado, vamos ocupar todas. Já falei e estão duvidando.

Aqui houve uma ação mais violenta do que em outros lugares, como São Paulo?

Pior. São Paulo nunca reprimiu. Foi falta de compreensão do secretário de Segurança. A culpa é do governador, que é chefe do secretariado. A polícia é subordinada a quem? Como tratar o trabalhador com uma brutalidade daquelas? O despejo é ilegal porque a terra é da Terracap, então é do povo. Onde o grilo arrumou ordem judicial? Achei um absurdo, nem em SP com o governo do PSDB. Se há um mandato, a gente discute com a Justiça; aqui não, fizemos uma reunião à noite; de manhã, a tropa estava aqui. Eu liguei para Hélio Doyle e disse: “Olhe a descrença em você foi total. Vocês pensam que isso vai impedir?” Na visita do governador ao acampamento, no assentamento, ele vai ver que ali tem gente, gente com sonho.

Com essa ação, as famílias do seu grupo fugiram?

Sim. Como enfrentar poderio militar, com bomba, PM, helicóptero? Nós não somos guerrilha, movimento armado. Tivemos de recuar. Recuperamos uma parte, mas isso volta. Ali mostramos o potencial. Aqui nós temos capacidade para fazer ocupação com 20, 30 mil famílias, e não duvide que o tempo não está longe. Não tem como o estado reprimir porque existe a legimidade da ocupação, porque a terra é pública. Tem de reconhecer. Imagine uma área de 270 hectares de terra urbana, quantas habitações você faz, de forma organizada e legal.

A maior barreira é o grileiro ou…

...o Estado, porque protege o grileiro. Por que não tiram os grileiros? Por que não tiram Luiz Estevão, Paulo Octávio, Constantino? Nós enfrentamos e enfrentaremos esse grilo. Não vamos deixar Brasília. A posição do governador naquela desocupação não foi dentro da legalidade, não havia motivo nenhum para colocar a tropa em cima das pessoas porque a terra é da Terracap. E logo ali perto há uma área de 200 hectares, usada para criação de gado, que é uma área urbana e pública. Essa é a realidade do DF e Entorno. Uma força repressiva muito forte, uma proteção do grilo muito forte — tem que ter um governo com peito, com vontade de enfrentar o grileiro — a ocupação nas margens de lagoas no Entorno é um negócio muito grande, é grilo, mas ali há as mansões, ninguém mexe, ninguém tira. A ilegalidade aqui é muito grande. Pensei que a ilegalidade aqui estivesse para o lado do Planalto, mas ao redor de Brasília, fiquei abismado. A situação é mais vergonhosa do que no Pontal do Paranapanema, em São Paulo.

Brasília é um segundo Pontal?

Eu sempre digo que o Pontal é vulcão adormecido, que entra em erupção a qualquer momento. Há mais de 8 mil famílias assentadas. Criamos uma convivência e o capital investiu muito. Mas tem 1 milhão de hectares de terra pública. É igual a Brasília. Uma hora explode. Porque é um direito do cidadão ocupar. Não diria que Brasília é um segundo Pontal. Mas existe um potencial grande. Aqui vai ter conflito de terra de grande dimensão e não vai demorar. Porque tem muita terra pública na mão de grileiro.

Se o Estado não enfrenta o grileiro, os movimentos sociais têm força para isso?

Não há outra forma de combater. Não vislumbro outro caminho a não ser o povo na rua exercendo seu direito de lutar pela construção de sua dignidade. Teremos de enfrentá-los logo, até porque não há outra saída. Eu vivi o Brasil todo, enfrentei siuações muito piores, tive embates com grileiros, pistolagens, principalmente no Pontal do Paranapanema. Disse a eles: “Se um dia essa guerra começar, se sobrar vivo é do nosso lado”. Eu não posso dar um passo atrás diante do meu direito; não posso me vender, não posso me render. Ou tem alguém ousado para dizer que esse aqui é um território do povo brasileiro, que os indígenas não podem ser massacrados, que os quilombolas têm de lutar por terras ou passaremos para a história como covardes. A história não vai me consagrar como um covarde, mas como lutador. Já fui várias vezes preso, já sofri atentado, estou vivo por milagre.

Você cita políticos e empresários influentes de Brasília, que estariam ocupando área pública. Tem provas disso?

Estive na Terracap, é direito do cidadão ser informado. Mas, na área grilada, sempre tem alguém lá e você chega no laranja. Os chacareiros mesmo dão informação. Você pergunta: trabalha para quem? Para o Paulo Octávio. Pergunta pra outro e ele diz: Luis Estevão. E outro: Constantino.... Tem fábrica dentro de área pública funcionando e autorizada por governos passados. Dizem que, em Brasília, vou enfrentar uma elite forte como se eu tivesse medo, como se tivesse fazendo algo errado. Não vamos nos calar diante disso. Se a área é pública, seja rural, seja urbana, é um direito ocupar, porque as pessoas não têm lugar para morar. O que não dá é para incentivar o grilo. Muitas lideranças foram oportunistas, criavam associações e fomentavam o grilo. A maioria das criações dos bairros aqui foi feita com doação de área para grilagem. Roriz e tantos outros fizeram sua base e currículo eleitoral em cima das terras do povo. O que falta é alguém com peito e coragem para denunciar isso. Muitos líderes comunitários se venderam.

Como ter certeza de que entre as pessoas do seu movimento não há também os oportunistas? 

Não tenho medo disso, minha consciência é minha conduta. Eu estou propondo um programa de habitação em área urbana digno do direito do cidadão para que more com a família na legalidade; o que estou propondo é uma reforma agrária em que o cidadão tenha uma chácara para produzir.

Muita gente que participa de ocupações tem casa e vida estruturada.

Tem gente que vai para o movimento com oportunismo. Nós filtramos, mas tem muito problema. Seria um erro não admitir. O crivo disso é do estado. Nosso papel é organizar os trabalhadores. Depois, o estado é que vai cadastrar, ver se tem perfil de baixa renda, se pode ou não ocupar. Existem a Codhab, a Secretaria de Habitação, o Incra. O movimento não intervém nisso. Qualquer cidadão que tem um pedaço de terra, por mais dificuldade que tenha, está bem, constrói sua casa, trabalha, constrói um valor chamado cidadania. O grilo tem politicagem, nós temos organização. Essa é nossa diferença. As famílias estão conscientes de que terão um título ou uma concessão de uso. Terão acesso a crédito, banco, área social. O desorganizado é o eleitoral, que vende depois. Brasília cresceu assim. A essência do grilo é o político. Os políticos entregaram as terras para se eleger.

Foi muito assediado por políticos aqui?

Não falta. Proposta indecente tem aos montes. O que me firma é a coerência, consciência de valor. Aqui não tem acerto, nem maracutaia. Você pode perder a liberdade, até a vida, mas a moral, não.

O governo pode apostar na sua permanência aqui?

Pode apostar. E os grileiros também. Quero mandar um recado para os grileiros e para os latifundiários: não tenham medo do Zé Rainha e da FNL, tenham medo da Constituição e da lei, porque o que estamos cobrando está dentro dela. Se é terra pública, urbana, vai para o programa habitacional; se é rural, para o programa de reforma agrária; os grileiros que se cuidem porque vamos enfrentar todos eles.

Haverá novas ocupações em breve?

Temos um trabalho em curso, de organizar trabalhadores de periferia que querem lutar por moradia na cidade ou voltar para a terra. O tamanho que vai ser não sei, mas não penso pequeno, porque águia não voa para pegar mosquito. Então, vamos longe e vamos organizar muita gente, porque aqui tem muita terra, tanto para habitação quanto para reforma agrária. O número? Depois a gente conta.

Como é sua rotina em Brasília?

Já fiquei aqui três, quatro meses; depende da necessidade. Vou também para São João da Aliança, Alto Paraíso, Unaí, vou ao Congresso quando há pautas. Mas fico mais no acampamento. Minha vida é acampamento; vou morrer e vou ser enterrado em acampanhamento. Não fico em hotel, até pela minha própria segurança. Se eu não me sentir confortável em morar debaixo de um barraco, eu não sei por que luto. O que gosto de fazer na minha vida é compartilhar o que penso e o que faço com essa gente.Quando não estou onde mora a minha família, em Teodoro Sampaio, em São Paulo, estou acampado. A cidade não é meu berço, por questão de princípio e segurança.

Você se sente ameaçado?

A vida é constante ameaça. A ousadia do latifúndio, você nunca sabe onde pode chegar. Nunca andei armado, nunca acreditei em segurança. A minha segurança é o povo.

Mas já teve uma prisão por porte de arma?

O carro que eu andava tinha uma arma, o cara tinha a arma, fui absolvido. Sou contra. Pela minha formação, nunca gostei.

Você foi condenado por extorsão, formação de quadrilha.

Com muito orgulho. Todos os meus processos se deram nesse âmbito, de formação de quadrilha. O que aparece é que o juiz condenou, mas não se mostra o porquê. Como é que tenho formação de quadrilha praticando extorsão em cima de grileiro? A tese é essa. Parte da promotoria é fascista e grande parte do Judiciário também. Fui condenado a 31 anos, que é alta periculosidade, então, não poderia estar solto. Não tenho bens. Tenho um lote de reforma agrária onde trabalha o meu irmão e vivo dos movimentos sociais. Não se demonstrou nada. Como prova o desvio? Eu recorri, está em segunda instância, em São Paulo. Minha liberdade foi concedida pelo STF. Por que um criminoso de alta periculosidade estaria aqui em Brasília negociando com o governador, com a Câmara? Nunca vi Fernandinho Beira-Mar, Marcola negociarem nada. Você tem de diferenciar o que é bandido de líder social. Neste país, há uma criminalização dos movimentos sociais, de interpretar a luta social como organização criminosa. Eu não sou criminoso. Sou um líder social.

Qual é o tamanho dos seus problemas com a Justiça?

Entre processos e acusações, são uns 40 e poucos. Prisão preventiva, já foram 41 na minha vida. A cada reintegração de posse, jogam como se eu fosse o responsável. Já respondi a processo em estado onde nunca fui. Fui preso 13 vezes, sempre vinculado à luta pela reforma agrária. A prisão de um justo aumenta a consciência de classe e seu dever.

Se tiver que cumprir a pena vai ser uma derrota para os movimentos sociais?

Pelo contrário, será a grande vitória. Não sei se indo para a cadeia para cumprir essa pena, se essa base vai ficar quieta, talvez seja o momento de se rebelar. O Brasil vai explodir, vai se rebelar, não tem saída. Eu ando por este país, eu vivo, vou às favelas, conheço os movimentos do Rio, de São Paulo, de Brasília. Há um amontoado de miseráveis manipulados por políticos, dominados por facções criminosas que interessa ao Estado mantê-los.

Quantos grupos integram a Frente Nacional de Luta?

A FNL se constitui em alguns estados: na Bahia, articulando com os indígenas e quilombolas; e em Mato Grosso do Sul, com oito movimentos sociais. Fortes estamos em São Paulo (com o MTST), no DF e no nordeste goiano. Existe um acampamento de 1.400 famílias, que é nossa base, em Água Quente, e outros. No DF, tem uns três ou quatro movimentos, alguns bem pequenos. O MBST (Movimento Brasileiro dos Sem-terra), que está no Recanto das Emas, é o mais forte aliado aqui. O governador vai visitar umas duas áreas nossas, o que achei muito legal, já que é um governo socialista. Tem que fazer um programa habitacional. É terra, se é agrária, temos de fazer um programa com a Secretaria de Agricultura, tanto que foi o movimento social que não deixou acabar com a Secretaria de Agricultura. Esse pedido foi feito ao governador. Dá para fazer um assentamento legal, legítimo, no DF. Se for área urbana, se faz com a Secretaria de Habitação.

A FNL tem uma meta de ocupação?

Fizemos 51 num só dia. Queremos chegar a ocupar 500 latifúncios em um dia no Brasil, e vamos fazer isso. Vamos botar 100 mil na Praça dos Três Poderes. Vai ser o dia em que campo e cidade se unirão para mudar este país. A perspectiva da Frente é avançar, não atrelar os movimentos sociais ao Estado. Toda vez que os movimentos fizeram isso, eles se acabaram. Digo isso com todo respeito à história do MST. Foi um erro fatal se atrelar ao governo. Se o movimento social faz isso, põe a cabeça na forca. O Estado não serve aos pobres. Essa é uma questão fundamental: o movimento deve caminhar com independência.

Por isso saiu do MST?

Eu saí porque não conseguia concordar que o movimento tinha que aderir ao projeto governista. Lula se elegeu em 2002, fui preso em 2003, e, quando saí, discordei. Não dava para o MST ir para dentro do governo.Tínhamos um conjunto de lideranças fortes, eu tinha muita expressão por causa do Pontal do Paranapanema, o João Pedro Stédile e outros. Mas saiu muita gente. Uns foram para o Parlamento, são meus amigos. O movimento perdeu muito, e eu fiquei até criar a FNL. Nós nos articulamos com o movimento dos pequenos agricultores para criar uma força no campo e a estendemos para a cidade, com os sem-teto. Hoje, eu não vejo a reforma agrária sem a cidade. A massa de trabalhadores está na periferia; o êxodo foi muito grande; a tecnologia no campo expulsou todo mundo, então tem que fazer a luta na cidade para que essas pessoas tenham oportunidade de voltar. Me dizem: ‘O cara que está na cidade não é camponês!’ E eu pergunto: ‘O pedreiro só é pedreiro quando tem a colher de massa na mão?’

O PT foi uma grande decepção por não ter mexido tanto quanto se esperava com essas estruturas?

Tenho decepção e tenho vergonha. Decepção pelo patrimônio moral que o partido tinha da ética e, hoje, perdeu. Falam do ataque da mídia, mas também queriam o quê, com essas alianças esdrúxulas que fizeram. Por isso, eu digo que não existe essa história de golpe. Golpe em quem? Golpe foi no Bolsa Família, no Minha Casa Minha Vida, no Fies, que estão diminuindo recursos, na reforma agrária. Dilma se elegeu com um programa e governa com outro.

Ela deveria ser afastada?

Não estou defendendo isso. Mas, com a plataforma econômica adotada no país para servir banqueiro, se eu fosse a Dilma, eu pediria para sair. Eu teria dignidade de olhar para o povo brasileiro e sair; pedir desculpas aos militantes dos movimentos sociais, aos que foram para a rua, porque esse programa não é justo, para não dizer que é uma traição à classe trabalhadora. Ela deveria ter essa humildade. Quem se sentou à mesa com Michel Temer, o PMDB, essa laia toda que está aí, foram eles e não consultaram os militantes dos movimentos sociais, urbano, rural e sindical. Por que agora a gente tem que ser ouvido? Não vejo golpe. Também não acredito em mudanças que venham de um parlamento podre. Este país precisa fazer uma revolução, e ela vai acontecer, uma revolução socialista, de verdade, em que se faz mudança, e não reforma. Tem que mudar.

E o Lula?

Foi o melhor presidente que tivemos. Como sou muito amigo dele, não tenho críticas. Ele tem um carisma… Respeito muito. O erro de Lula foi concordar com a candidatura de Dilma. Ela não consegue dialogar com ninguém; e as pessoas gostam do Lula sem ver, porque ele é uma simpatia, é gente do povo. Como se diz lá em Minas, é um cachaceiro, comedor de queijo, um cara bom; ele sou eu, o peão da fábrica, o homem do campo. Dilma é uma intelectual fora da realidade, sem carisma, não sabe tratar as pessoas. Agora que foi dialogar com movimentos sociais. Nunca fui, nem vou.

Nunca quis se candidatar?

Nunca me filiei; por isso, tenho o direito de criticar. Partido é espaço para disputar o poder, olha o resultado do PT. Não vai fazer nenhuma mudança. Reafirmo a minha convicção: luto para fazer mudança.

Brasília é uma cidade cheia de poderosos. Acredita numa mudança aqui também?

Acredito no povo. O dia em que o povo tomar a rua, descer o morro e não for carnaval, você vai ver a diferença. Não é possível mais aguentar a violência policial, os assassinatos de jovens, o sofrimento nas periferias, criar presídio. Essa panela não cabe mais pressão, está prestes a explodir. Não é profecia, é análise de classe. Pode levar algum tempo, a escravidão neste país demorou 300 anos, mas Zumbi estava certo. Um dia, os ricos não suportarão mais. A dignidade deste povo, a conquista da liberdade, virá com ele na rua, na praça.

Você é religioso?

Católico, embora tenha muita ligação com o divino. 

O catolicismo perdeu espaço no campo?

A igreja sempre esteve voltada ao império; a fé do povo era voltada à mudança; a igreja era voltada para o capital. O que salva o povo é a fé, a garra, a coragem, é acreditar no que faz. O tratamento que o papa Francisco dá hoje à terra dá uma nova dimensão à igreja, mas ainda é reacionária.

Como se define?

Sou um sonhador. Se não tivesse certeza de que o país vai fazer a revolução, já teria desistido. Não dá para imaginar o quinto país do mundo, com 280 milhões de hectares de terra improdutivos, ter 4 milhões de sem-terra. Não dá para se admitir que um cidadão tenha milhões de hectares de terra, 100, 200 fazendas, parte delas sem produzir.

O que mais lhe marcou na luta pelos assentamentos?

Eldorado dos Carajás me marcou muito. Conheci aqueles meninos, vivi lá. Quando vi as imagens daquele massacre... Tinha saído um pouco antes. Como pode aquela ignorância? Vi a morte quando um pistoleiro atirou em mim. A bala entrou, mas saiu para cima, não tinha lógica aquela trajetória. Era muito tiro, fiquei vivo. Foi no Pontal, tenho a imagem daquele atentado, o cara estava muito perto. Não consigo entender como sobrevivi. 


“Aqui vai ter conflito de terra de grande dimensão. Porque tem muita terra pública na mão de grileiro. Esse conflito vai ganhar dimensão e não vai demorar"


Fonte: POR CRISTINE GENTIL E LUÍS TAJES-CORREIO BRAZILIENSE/FOTOS: LUÍS TAJES/CB/DA PRESS

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