quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Invasores de direito


Vocês estão acostumados a ler aqui no Conversa Informal sobre regularização fundiária e a história de Vicente Pires. Porém, vou juntar os dois temas para ferir o ego de algumas pessoas que, obviamente, nunca quiseram falar sobre como foi o processo para começarem a morar em VP quando a região deixou de ser área rural e passou a ser um setor habitacional de condomínios horizontais – ou um pouco depois no caso de compradores dos primeiros compradores. Todos temos um vizinho desses. 

Ao contrário do que dizem alguns emergentes que desejam morar em VP, nosso bairro jamais foi invasão. A maior parte dos chacareiros tinha posse em outro local do DF que foi solicitado pelo governo e, assim, surgiu a indenização em terrenos de 30.000m². É óbvio que ninguém invadiria terrenos tão grandes e próximos do centro da capital federal e aqui permaneceria sem uma ação de despejo por parte do poder público, mas é preciso que se escreva com todas as letras para que fique bem claro. 

Pois bem, os antigos chacareiros de VP tinham a posse das chácaras sem poder fracioná-las. A fórmula de uso estipulada pela Fundação Zoobotânica era a seguinte: 30% para moradia/lazer e 70% para produção agrícola. Dessa forma, quando em 1997 o então governador Cristovam Buarque desocupou milhares de barracos na Estrutural e prometeu fazer o mesmo com os chacareiros de VP foi o ápice de venda de chácaras pelos chacareiros. Note: eu falei venda de chácaras e não de lotes pelos chacareiros, esta última proibida legalmente. Enfim, todos sabiam que a indenização seria outra desvalorização do patrimônio, como já ocorrido na primeira vez na década de 1980. 

É aí que entram os corretores de imóveis comprando chácaras inteiras e prometendo pagar com a venda dos lotes. Entre idas e vindas de derrubadas e pagamentos de propinas para fiscais nos governos Cristovam, Roriz I, Roriz II – A vingança final, Arruda, Agnelo e até Rollemberg como foi o caso da chácara 200, os corretores sumiam com o pouco que conseguiam de pagamentos desses lotes vendidos. Muitos chacareiros, percebendo a movimentação típica de malandro desses corretores, quiseram desfazer o negócio e passaram a vender por conta própria, recebendo mais frequentemente a visita de fiscais a partir de então. O resultado disso foram chacareiros que não ganharam sequer metade do valor de venda da chácara com vizinhos caloteiros e, não obstante, ditando regras nos recém-criados estatutos, convenções e demais instrumentos legais do tipo que os narizes empinados da classe média adoram mais do que parcela da CVC. 

E foi desse jeito que nasceram os invasores de direito. São pessoas que não pagaram pelo lote justificando que se é terra pública então só tomaram a parte que lhes era devida. Também há os que compraram o lote, com ou sem casa, de quem não pagou o corretor. Os primeiros compradores/caloteiros se mandaram enquanto era tempo, deixando de espólio alguém que pagou um valor bem menor e nem desconfia de onde veio o “desconto”. Com documentação frágil do tipo cessão de posse de direitos, o final da década de 1990 foi um profícuo encontro entre corretores e compradores que fizeram qualquer coisa, menos cumprir o contrato que não existia – e não poderia existir – com os chacareiros. E ninguém pode reclamar de um contrato que não existe não é mesmo? Outra que ouvi de um corretor: chapéu de otário é marreta! 

Tenho amigos filhos de chacareiros que até hoje são inconformados com o golpe que seus pais levaram e tentam encontrar o corretor para cobrar satisfações. Perda de tempo! Melhor para a saúde mental esquecer de tudo isso e tocar a vida pra frente. É injusto? Sim, é claro que é. Mas cada um tem que saber lidar com isso. Como filho de chacareiro, o caminho que encontrei foi duas décadas depois de tudo escrever em um dos jornais comunitários da cidade para dizer aos invasores de direito que de fato não posso fazer nada, mas sei quem são e o que fizeram no verão passado. E acreditem: isso é o bastante para lhes colocar em seu devido lugar.   

Rafael Ayan 

Pedagogo, Assistente Social e Mestre em Educação

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